Blog do Fernando Rodrigues

A política e todos os seus vícios na TV

Fernando Rodrigues

“House of Cards” é um grande seriado e mostra o pior dos políticos

Produção da Netflix descreve com precisão as traições e a falta de caráter no Congresso

Há um aspecto sombrio no formato do novo seriado televisivo “House of Cards”, já muito bem mencionado por Mauricio Stycer em sua coluna na Folha de domingo (10.fev.2013). A Netflix elevou ao paroxismo a fórmula de dar ao telespectador o que ele deseja assistir.

Mas há também o seriado “House of Cards” propriamente. Trata-se de uma representação fina e muito próxima da realidade vista nos bastidores de dezenas de Congressos pelo mundo afora. No caso, trata-se do Congresso dos Estados Unidos com toda a sua perfídia, traições, mau-caratismo e um interesse desmedido pelo poder.

Aqui, o trailer oficial:  http://www.youtube.com/watch?v=ULwUzF1q5w4

Num dos episódios, a personagem principal (um deputado que é o líder do Partido Democrata) conversa com um lobista. Em seguida, sozinho, afirma desprezar as pessoas que se interessam muito e apenas por dinheiro. Dinheiro acaba, diz ele. O poder, não. Poder é para sempre.

A definição vale para políticos em várias partes do mundo, embora no Brasil muitos pareçam ter uma predileção pelo binômio poder & dinheiro, não necessariamente nessa ordem.

Talvez por estar vivendo em Brasília por dever do ofício já há muito tempo, considerei “House of Cards” muito feliz ao representar manobras e conchavos políticos dos mais diversos. O deputado democrata que é a personagem principal manipula seus aliados, mente de forma descarada e influi no noticiário com muita habilidade. Já vi esse filme dezenas de vezes.

Logo no início, o deputado protagonista é desconsiderado para um cargo de ministro. Estava tudo acertado com o presidente da República que acabara de ser eleito. Mas o acordo foi rompido. O deputado engole a seco a desfeita. Finge estar calmo e diz, dentro da Casa Branca, que continuará a ajudar o governo mesmo assim –para em seguida começar a tramar o oposto nos bastidores. Destrói a reputação do colega que foi indicado em seu lugar.

O engenho e arte das manobras está em fazer as vítimas não perceberem o que se passa. Mais: acharem que o algoz é, na realidade, um aliado.

(Alguém pensou em PMDB ou quejandos? Acertou. Mas seria injustiça creditar apenas ao PMDB tais atitudes. Esse comportamento está disseminado em todas as legendas, PT e PSDB inclusos).

A relação entre fonte e repórter também é explorada à perfeição em “House of Cards”. O deputado protagonista escolhe uma repórter jovem do jornal mais influente da capital norte-americana. A moça deseja dar furos e prosperar na profissão.

O deputado oferece no primeiro contato uma informação valiosa. Havia de fato relevância jornalística no que estava sendo vazado. Até aí, tudo bem. Mas depois, a coisa muda de figura. A repórter fica refém da fonte: se não publicar o que receber, pode nunca mais ter acesso a novos furos.

O segundo dado vazado pelo deputado é um fiapo irrelevante do ponto da vista da informação: era só a cópia de um jornalzinho de faculdade, impresso há 35 anos e no qual o então editor era o atual ministro que agora está prestes a ter a reputação destruída. Na publicação há um editorial, sem assinatura, cheio de opiniões polêmicas sobre as relações entre EUA e Israel.

Esperta, a repórter olha, lê e logo conclui: “Mas não há como dizer que esse editorial foi de fato escrito por ele”. O deputado retruca: “Não interessa. Há uma pergunta a ser respondida”. Qual? “Ele aprovou a publicação do que está no artigo?”.

Ou seja, coloque no jornal e lance uma dúvida sobre o que pensa esse ministro e o que ele dizia na época em que era estudante.

Ao “vender” o seu novo furo para seu editor, a repórter usa exatamente o mesmo argumento proposto por sua fonte, o deputado. Repete as mesmas palavras. A reputação do ministro é destruída em dias.

Os encontros da repórter com a fonte podem parecer inverossímeis para algumas pessoas que olham de fora. Os dois se avistam em um museu e no banco de uma estação de metrô, entre outros locais. Por que um deputado líder da maioria iria se expor dessa forma? Posso responder a essa pergunta com tranquilidade: quem está no poder às vezes arrisca-se mais do que o necessário. Em Brasília, já participei de reuniões em circunstâncias muito mais improváveis do que essas.

“House of Cards” é codirigida por David Fincher (''A Rede Social'' e ''Clube da Luta''). O ator principal é Kevin Spacey (de ''Beleza Americana''). O texto é baseado numa série dos anos 1990 produzida pela BBC. Para ganhar em verossimilhança jornalistas e analistas políticos verdadeiros, que atuam em Washington, foram contratados para fazer pontas como si próprios –entre outros, Donna Brazile, Candy Crowley, John King, Dennis Miller e Soledad O'Brien (da CNN), Bill Maher (HBO) e George Stephanopoulos (ABC).

A Netflix gastou US$ 100 milhões com “House of Cards”. Inovou ao lançar os 13 episódios da primeira temporada de uma só vez, no dia 1º de fevereiro. Isso mesmo: é possível assistir a tudo de uma vez.

O 1º capítulo tem 56 minutos. Quem aprecia, estuda ou acompanha política não consegue tirar os olhos da tela da TV por um segundo. Tudo o que se sabe sobre os bastidores do Congresso está ali, escancarado.

Só é possível assistir a “House of Cards” sendo assinante do Netflix. Não sei se o seriado será um sucesso. Para mim, vale cada centavo.

 

Post Scriptum: a Netflix poderia ser mais cuidadosa com as legendas em português de “House of Cards”. O termo “majority whip” é traduzido como “corregedor”, um erro crasso.
Nos Congresso dos EUA,  a função de líder da bancada majoritária se divide em duas: o “leader” (o líder propriamente) que tem o poder de decidir o que vai ser votado e toma as decisões mais estratégicas e políticas, e o “whip” (o açoitador), uma espécie de líder do plenário, que vai se responsabilizar pelo foco da bancada, para que todos os seus integrantes votem como deseja a direção partidária e/ou o governo.
É difícil traduzir “majority whip” para o português. Não existe cargo equivalente no Congresso brasileiro, onde há o líder e os vice-líderes –e todos trabalham para “açoitar” os deputados quando há uma votação. A melhor forma de traduzir, portanto, seria “vice-líder da maioria”, ainda que a expressão possa conferir menos importância que de fato tem o cargo de “majortity whip”.
Não se perderia nada se “majority whip” fosse simplesmente traduzido como “líder da maioria”.
Uma coisa é certa: “majority whip” não é o corregedor.

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