Blog do Fernando Rodrigues

Marco Civil acerta na neutralidade da rede, mas tem defeitos

Fernando Rodrigues

Há imprecisões sobre armazenamento de informações privadas de usuários

Texto facilita a censura judicial ao enfatizar como é o procedimento

Conceito vago de ''interesse da coletividade'' determinará retirada de algo da web

O texto do projeto de Marco Civil da Internet (íntegra no post abaixo) aprovado pela Câmara em 25.mar.2014 tem uma novidade importante: define em lei o que é a “neutralidade de rede” no Brasil.

Se o Senado aprovar o projeto e se a presidente da República o sancionar tal como está, as empresas brasileiras não poderão fazer aqui o que já está sendo uma realidade nos EUA: um acerto entre um provedor e um site para que um determinado conteúdo seja acessado mais rapidamente que o do concorrente.

Por exemplo, a Netflix (empresa que transmite vídeos em streaming) acaba de fazer um acerto com a Comcast (uma gigante entre os provedores de internet) para ter seu conteúdo acessado pelos consumidores numa velocidade maior.

Quem desejar assistir a filmes na web nos EUA poderá escolher os da Netflix, com alta velocidade, ou os de concorrentes que poderão travar no meio da exibição. Ou seja, o mercado torna-se desigual e menos competitivo.

O Marco Civil da Internet impedirá no Brasil que tais acordos sejam firmados. Os provedores de acesso não poderão vender velocidades diferentes de acesso com base no tipo de conteúdo veiculado.

O que fica ainda permitido aos provedores brasileiros é vender diferentes velocidades de acesso, sem discriminar o conteúdo. Assim, um consumidor que pagar para ter 10Megas vai acessar qualquer site nessa velocidade. O que desejar optar por 20Megas pagará um pouco mais para acessar também todos os sites nessa velocidade. E assim por diante.

Nesse modelo a ser adotado pelo Brasil, preserva-se a possibilidade de provedores de internet terem lucro quando oferecem um serviço melhor (mais rápido). Ou seja, estimula-se investimentos. Mas fica proibida a discriminação de conteúdo –as empresas entenderam tudo isso e aprovaram essa abordagem.

Até aí, tudo bem. Mas o texto do Marco Civil da Internet é longo e contém vários pontos obscuros. Eis alguns:

 

CENSURA MAIS ACESSÍVEL
O artigo 19 e seus parágrafos 3º e 4º permitem que juízes de juizados especiais, motivados em “interesse da coletividade” (um conceito vago e impreciso), determinem liminarmente a retirada de conteúdo de um site.

O que chama a atenção nesse dispositivo é a regra estar presente dentro de uma legislação específica sobre a internet. A rigor, a legislação vigente no país hoje já trata desse procedimento. Ao detalhá-lo no Marco Civil da Internet, o Congresso faz uma promoção ativa das ações que visem a censurar conteúdo.

O deputado federal Alessandro Molon (PT-RJ) argumenta que esse artigo e seus parágrafos referem-se apenas a conteúdo de terceiros que são publicados em determinado site, portal ou blog. Por essa interpretação, esse artigo e esses parágrafos estariam se referindo apenas a comentários que as pessoas possam postar a respeito de algum conteúdo ou notícia. Esse argumento, entretanto, não fica explícito no texto da lei que já passou pela Câmara e abre uma brecha para que a regra se estenda a qualquer tipo de conteúdo, inclusive jornalístico, que poderá ser censurado e retirado do ar.

Hoje já é possível retirar um determinado conteúdo da internet. Para conseguir isso, é necessário entrar com uma ação contra o site e/ou o responsável pela publicação. Ao explicar que esse tipo de medida pode ser feito por meio de ações em juizados especiais, que dispensam a contratação de advogados, o Marco Civil funciona praticamente como uma cartilha convidando os cidadãos a buscarem tal tipo de censura. Fica pavimentado o caminho, então, para uma enxurrada de ações.

Há um debate hoje em democracias consolidadas sobre a inconveniência de retirar conteúdo jornalístico de circulação. Em alguns países o que ocorre é uma multa no caso de ficar comprovado o dolo contra a parte que se diz atingida. A censura e eliminação total do conteúdo, entretanto, não é um procedimento considerado alinhado aos princípios básicos da liberdade de expressão. No Brasil, como já é possível proibir a circulação de determinados conteúdos, esse princípio não existe. Agora, o Marco Civil reforça a possibilidade de censura e eliminação de determinadas informações na web.

A gênese desse artigo teve alguns atores importantes. Um deles foram as Organizações Globo, que defenderam durante o debate a prática “notice and take down”, que significaria uma regra simples em que portais e sites seriam notificados por alguém que se sentisse ofendido –e nessa hipótese os próprios portais ou sites retirariam o conteúdo do ar. Esse tipo de regra foi muito criticada por organizações da sociedade civil e de defesa da liberdade de expressão por considerarem que provedores de internet, sites e blogs se tornariam na prática censores de conteúdo. Prevaleceu então a necessidade de haver algum procedimento judicial por parte de quem se sentisse ofendido.

Outro ator relevante nessa disputa foram os políticos, dentro e fora do Congresso. Eles pressionaram para que o Marco Civil contivesse uma regra bem clara sobre a censura e a retirada de conteúdo da web.

Eis os trechos da futura lei que tratam do tema (com as partes mais relevantes em negrito):

Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de Internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.

[…]

§ 3º As causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na Internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de Internet poderão ser apresentadas perante os juizados especiais.

§ 4º O Juiz, inclusive no procedimento previsto no § 3º, poderá antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, existindo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na Internet, desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.

 

RESPONSABILIZAÇÃO DOS PROVEDORES
Esse é um trecho do Marco Civil que representa uma grande vitória dos que querem responsabilizar os provedores por conteúdos de terceiros –ou arrumar uma desculpa para que conteúdos sejam derrubados antes de ordem judicial.

O Marco Civil estipula que haverá no futuro uma lei sobre “infrações a direitos de autor ou a diretos conexos”. Enquanto essa lei não existir, fica valendo a “legislação autoral em vigor”.

Ou seja, um blog ou site que está hospedado num portal pode, eventualmente, ser acusado de publicar material sem o devido direito autoral. É impossível um grande portal identificar previamente quem está fazendo isso. Mas pelo que determina o Marco Civil, um determinado provedor será “solidariamente responsável” com aquele que infringir a lei.

Eis os trechos que tratam disso (com as partes mais relevantes em negrito):

Art. 19 (…)

§ 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a diretos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal.

Art. 31. Até a entrada em vigor da lei específica prevista no § 2º do art. 19, a responsabilidade do provedor de aplicações de Internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, quando se tratar de infração a direitos de autor ou a direitos conexos, continuará a ser disciplinada pela legislação autoral em vigor aplicável na data da entrada em vigor desta Lei.

E o que que diz a Lei autoral:

Art. 104: Quem vender, expuser à venda, ocultar, adquirir, distribuir, tiver em depósito ou utilizar obra ou fonograma reproduzidos com fraude, com a finalidade de vender, obter ganho, vantagem, proveito, lucro direto ou indireto, para si ou para outrem, será solidariamente responsável com o contrafator, nos termos dos artigos precedentes, respondendo como contrafatores o importador e o distribuidor, em caso de reprodução no exterior.

 

ARQUIVAMENTO DE INFORMAÇÃO PRIVADA
Aqui existe um grande risco de invasão de privacidade. O texto do Marco Civil fala em guarda de conteúdo de comunicação privada por parte dos provedores, algo que não pode ocorrer por princípio constitucional.

Nesse caso específico há um problema adicional pelo fato de o Brasil não dispor de uma legislação que trate da coleta e armazenamento de dados pessoais dos cidadãos. Nesse vácuo, o projeto de Marco Civil da Internet acaba entrando de maneira incompleta e deixando vários buracos para que as pessoas possam ter seus dados violados.

Eis as menções (com as partes mais relevantes em negrito):

Art. 10. A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de Internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas.

[…]

§ 2º O conteúdo das comunicações privadas somente poderá ser disponibilizado mediante ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, respeitado o disposto nos incisos II e III do art. 7º.

Art. 11. Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de Internet em que pelo menos um desses atos ocorram em território nacional, deverá ser obrigatoriamente respeitada a legislação brasileira, os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros.

 

APLICATIVOS OBRIGADOS A GUARDAR DADOS
Outra inovação é a regra pela qual qualquer site ou aplicativo na internet com finalidade de lucro ter de registrar os dados de seus usuários por, no mínimo, 6 meses. Isso passa a ser obrigatório. Por exemplo, quem usa Skype, WhatsApp ou Twitter saiba que agora tudo o que fizer dentro desses aplicativos ficará guardado por 6 meses.

Nesse caso, estipula o Marco Civil, não são os dados de acesso ao provedor de internet (cuja retenção é prevista em artigo diverso), mas a sites ou aplicativos no celular ou outros dispositivos móveis –as chamadas “aplicações de internet”.

Ao consultar especialistas, o Blog concluiu que não há nada semelhante em qualquer outra legislação no planeta.

Eis um comentário de uma pessoa que é estudiosa do assunto: “O armazenamento obrigatório destes dados aumenta, por si só, o risco de mau uso e vazamento dessas informações, terá um custo e, ainda, impedirá que um site legitimamente apague uma informação que um cidadão, seu usuário, solicitou que apagasse, por mais inocente que seja. Igualmente, veda a própria existência de determinados serviços privacy-friendly”.

Perguntas a serem feitas: por que um provedor de serviços via um aplicativo de celular ou tablet precisa guardar dados privados de um consumidor por 6 meses? E o consumidor que desejar deletar imediatamente seus dados de uso? Não será autorizado? E os aplicativos cujas mensagens desaparecem depois de lidas (como Snapchat e Wickr)? Terão de mudar seu sistema de funcionamento no Brasil? Muitas coisas que terão de ser consideradas pelos senadores na próxima fase de tramitação do Marco Civil da Internet.

Eis o trecho sobre esse tema:

Art 15. O provedor de aplicações de Internet constituído na forma de pessoa jurídica, que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos, deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de seis meses, nos termos do regulamento.

P.S.: Texto atualizado em 26.mar.2014 às 11h.

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