Blog do Fernando Rodrigues

Arquivo : Van Gogh

Mossack ajudou a esconder bilhões de dólares em obras de arte
Comentários Comente

Fernando Rodrigues

Obras de Van Gogh, Picasso e outros pertencem a offshores

Panama Papers ajudam a entender como funciona esse mercado

mulher-de-algier_darren-ornitz_reuters-mai2015

Uma tela de Pablo Picasso, comprada por meio de offshore

Por Jake Bernstein

Após uma descoberta feita por acaso, o neto de um negociante judeu de artes soube que um valioso quadro que ele acreditava ter sido roubado pelos nazistas poderia estar em mãos de uma das famílias mais influentes no mundo das artes. Provar isso era outra coisa.

A pintura, do artista italiano Amadeo Modigliani, é conhecida como Homem Sentado, com Bengala. Modigliani, um jovem pobre e alcoólatra, morreu de tuberculose quase um século atrás. Seus quadros hoje são vendidos por somas que chegam a US$ 170 milhões. O retrato de um homem elegante, com bigode, empoleirado numa cadeira, mãos repousando sobre a bengala, pode valer US$ 25 milhões.

Investigadores rastrearam a obra até um clã de bilionários que a comprou num leilão em 1996. Advogados do neto do negociante contataram a Nahmad Gallery, em Nova York, declarando que a pintura pertencia ao cliente, que estava autorizado a recebê-la.

Solicitaram um encontro para discutir o assunto. A galeria não respondeu, segundo documentos forenses. O neto do negociante abriu um processo. Quatro anos depois, advogados das duas partes continuam brigando na Justiça.

Os Nahmads insistiram, num tribunal federal e num do Estado de Nova York, que o quadro não pertencia à família. A dona era uma empresa offshore chamada International Art Center, registrada por uma banca de advocacia panamenha.

Mas registros secretos analisados para a série Panama Papers sugerem que a declaração da galeria seria um truque montado para esconder os verdadeiros donos do quadro. Os registros, mais de 11 milhões de documentos, vieram dos arquivos internos da Mossack Fonseca, uma empresa panamenha de advocacia especializada em criar estruturas corporativas que podem ser usadas para ocultar bens.

A série de reportagens é uma iniciativa do ICIJ (Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos), organização sem fins lucrativos e com sede em Washington, nos EUA. Os dados foram obtidos pelo jornal Süddeutsche Zeitung. O material está sendo investigado há cerca de 1 ano. Participam desse trabalho com exclusividade no Brasil o UOL, o jornal “O Estado de S.Paulo” e a RedeTV!.

Datados de 1977 a 2015, os arquivos incluem a maior apreensão de informações internas sobre conexões entre o comércio internacional de arte e jurisdições offshore secretas. Os documentos mostram uma atividade fracamente regulamentada em que o anonimato é regularmente usado para blindar todo tipo de comportamento questionável.

A família Nahmad é dona da offshore International Art Center (IAC), empresa baseada há mais de 20 anos no Panamá,  segundo os registros. A firma é parte importante dos negócios de arte dos Nahmads.

David Nahmad, chefe da família, é o único dono do IAC desde janeiro de 2014. Quando confrontado com a documentação mostrando que a família possuía o IAC, o advogado Richard Golub disse ser “irrelevante quem é o dono da companhia”. “O que importa no caso são as acusações. O queixoso pode prová-las?”.

A questão central, disse o advogado, é se o neto tem provas de que esse quadro específico foi roubado de seu avô. Apesar dos anos de batalha jurídica, essa questão recebeu pouca atenção de um juiz, uma vez que as duas partes continuam brigando sobre quem é o dono da tela.

A Mossack Fonseca não apenas ajudou os Nahmads a criar o International Art Center em 1995. Também proporcionou a muitos de seus outros clientes os instrumentos necessários para operar secretamente grandes transações de arte no mundo todo com obras de artistas como Van Gogh, Rembrandt, Chagall, Matisse, Basquiat, Warhol.

Entre outros conhecidos colecionadores de arte com companhias registradas por meio da Mossack Fonseca estão o clã espanhol Thyssen-Bornemisza, o magnata chinês do entretenimento Wang Zhongjun e a neta de Picasso Marina Ruiz-Picasso.

Wang Zhongjiun não respondeu a um pedido para comentar a revelação. Marina não quis falar. Brojia Thyssen, por meio de seu advogado, reconheceu ter uma empresa offshore, mas devidamente declarada à receita espanhola.

Os registros da Mossack Fonseca mencionam arte suficiente para encher um pequeno museu. Ao lado de cruciais novas evidências na batalha legal pelo Modigliani, há pistas nos arquivos da empresa sobre o misterioso desaparecimento de obras de arte de um magnata grego da navegação e detalhes até agora desconhecidos por trás de um dos mais famosos leilões de arte moderna do século 20.

Os documentos revelam vendedores e compradores de arte usuários dos mesmos obscuros meandros do sistema financeiro global usados por ditadores, políticos, fraudadores e outros, que se beneficiam do anonimato proporcionado por essas zonas secretas.

Em anos recentes, à medida em que os preços de arte subiam dramaticamente, transações vinham sendo frequentemente obscurecidas pelo uso de empresas offshore, testas de ferro, zonas de livre-comércio, leilões manipulados e vendas privadas.

Embora o segredo possa ser usado para evitar publicidade, limitar a exposição legal ou facilitar operações internacionais, pode ser uma forma de fugir do pagamento de impostos ou ocultar histórias sobre propriedade duvidosa.

Uma vez que objetos de arte são facilmente transportáveis, caros e pouco regulamentados, as autoridades temem que sejam usados com frequência para lavagem de dinheiro.

O BOOM DO MERCADO DE ARTE
O atual boom do mercado – e sua conexão com zonas de segredo do sistema financeiro – proporciona mais evidências sobre o espetacular crescimento do número de super-ricos. A arte tornou-se um valioso recurso para uma elite global ansiosa por proteger seu dinheiro em portos seguros e discretos.

Em 2015, as vendas de obras de arte passaram de US$ 63,8 bilhões, segundo a publicação sobre negócios Art Market Report, com grande crescimento do comércio das peças mais caras.

O total mobilizado em arte em 2013 foi estimado em US$ 32,6 bilhões.

“O que mais impulsiona o mercado de arte é a riqueza acumulada” diz Michael Moses, da Beautiful Asset Advisors, que acompanha o comércio de arte. “Como a riqueza ‘sofisticada’ vem crescendo mais depressa que qualquer outra, esse pessoal tem dinheiro sobrando para investir em arte.”

Cerca de metade das transações com arte são privadas, entre vendedores e compradores, calcula a Art Market Report. Há poucas informações sobre esse comércio. O restante é feito por meio de leilões públicos, que oferecem transparência no que tange aos preços, mas ainda permitem a vendedores e compradores que se mantenham suas identidades em sigilo, segundo Moses.

Quando uma obra de arte muito valiosa muda de dono, ela com frequência vai parar numa zona de livre-comércio conhecida como freeport.

Nessa zona, os proprietários não pagam taxas de importação ou alfândega. Críticos da prática temem que o sistema freeport possa ser usado para fugir do pagamento de impostos ou para lavar dinheiro, uma vez que valores precisos e as transações não podem ser rastreados.

Segundo a empresa de serviços internacionais Deloitte, 42% dos colecionadores por ela assessorados admitem que poderiam usar um freeport. O mais antigo, com o maior volume de obras de arte, fica em Genebra. Comenta-se que em seu complexo de armazéns existam tesouros suficientes para rivalizar com qualquer museu do mundo.

A Natural Le Coultre, empresa de propriedade de Yves Bouvier, aluga quase um quarto do espaço do freeport de Genebra. Bouvier é também proprietário majoritário de freeports em Luxemburgo e Cingapura e consultor de um outro em construção em Pequim. Essas propriedades lhe valeram o título de “rei dos freeports”.

Mas são as atividades de Bouvier como intermediário em negócios privados que o tornaram conhecido no mundo das artes – e alvo de processos. O bilionário russo Dmitri Rybolovlev tem ações contra Bouvier em Mônaco, Paris, Hong Kong e Cingapura, acusando-o de inflar fraudulentamente os preços de quadros antes de vendê-los.

Após analisar as queixas, um juiz de Cingapura levantou o congelamento de bens de Bouvier e um de Hong Kong fez o mesmo. Bouvier nega terminantemente as acusações.

Não surpreendentemente, dado o número de bilionários e negociantes de arte que usam os serviços da Mossack Fonseca, Bouvier e Rybolovlev são clientes da empresa. Os registros da Mossack Fonseca mostram a existência de pelo menos cinco companhias ligadas a Bouvier, embora nenhuma delas esteja relacionada ao caso Rybolovlev, que tem duas empresas no rol da Mossack Fonseca.

Rybolovlev não quis comentar o caso. Um representante de Bouvier disse que seu cliente utiliza empresas offshore com propósitos claramente legais.

O JOGO DOS LEILÕES
Muitos localizam o início do selvagem entusiasmo por arte moderna numa venda ocorrida em uma segunda-feira de novembro de 1997. Realizado na Christie’s de Nova York, o leilão da coleção de Victor e Sally Ganz levou a valorizações recordes de quadros e confirmou-se como marco na transformação de arte em mercadoria global.

“De repente, o leilão Ganz desencadeou uma agitação como nunca se vira”, diz Todd Levin, diretor do Levin Art Group, empresa de consultores de arte de Nova York. “Foi como uma injeção de esteroide no mercado.”

A história completa por trás do leilão Ganz nunca foi contada. Documentos vazados mostram interesses ocultos e o envolvimento de um dos intermediários offshore favoritos do negócio de arte, a Mossack Fonseca.

Os Ganz eram colecionadores de obras de Picasso. Foram também dos primeiros a investir em Frank Stella e eram amigos e apoiadores dos pintores Jasper Johns e Robert Rauschenberg e da escultora Eva Hesse. Após a morte do casal, seus filhos foram forçados a vender a coleção que adornara as paredes da casa de sua infância.

Formar a coleção custou aos Ganz US$ 2 milhões e levou 50 anos. Numa tarde, o conjunto foi vendido pelo preço recorde de US$ 206,5 milhões.

O que não se sabia até agora é que os herdeiros Ganz parecem ter vendido a coleção meses antes do leilão. O operador chave na transação foi uma offshore aberta em Niue, uma pequena ilha no Pacífico Sul. A empresa chamava-se Simsbury International Corp.

A Simsbury parece ter sido criada apenas para a venda da coleção Ganz. Surgiu em abril de 1997. Um mês depois, comprou a coleção. O agente da Simsbury era a Mossack Fonseca. Funcionários da firma de advocacia atuaram como diretores nomeados da Simsbury.

Controlavam a empresa no papel, mas não tinham participação real em suas atividades. Esses diretores assinaram acordos em nome da companhia com um banco, uma casa de leilões e uma empresa transportadora de obras de arte.

A propriedade da companhia estava em nome de detentores de ações. Estas eram simplesmente certificados que permitiam ao portador receber ou transferir anonimamente seu valor. Hoje, tais papéis estão banidos em muitos países por facilitarem evasão de impostos e lavagem de dinheiro.

Num negócio fechado em 2 de maio de 1997, a Simsbury International comprou a coleção Ganz por US$ 168 milhões da Spink & Son, casa de leilões londrina de propriedade da Christie’s, segundo os documentos vazados. A exata natureza do acerto entre a família Ganz e a Christie’s não fica clara nos documentos.

Um representante da família não quis responder a perguntas do ICIJ sobre detalhes específicos da transação.

A venda tinha uma cláusula segundo a qual se o preço alcançado em leilão fosse maior a diferença seria dividida entre o dono da Simsbury e a Spink & Son.

O homem que tinha procuração da Simsbury como advogado e assim exercia controle sobre a empresa e sua conta bancária era o bilionário britânico Joseph Lewis. O então homem mais rico da Inglaterra fizera fortuna jogando com moedas. Lewis era também o maior acionista da Christie’s.

O catálogo da coleção Ganz informava que “a Christie’s tinha interesse financeiro direto em todo o lote” naquele leilão, mas os termos desse interesse nunca foram explicados.

Lewis apostara que o negócio renderia de vários modos.

O leilão Ganz contribuiria para fazer de 1977 o melhor ano de vendas da Christie’s até então. Naquele ano, a empresa faturou mais de US$ 2 bilhões.

Lewis não quis comentar o caso.

Uma das obras mais caras da coleção Ganz vendidas no leilão foi Mulheres de Algier, de Picasso. As telas fazem parte de uma da famosa série de 15 quadros, pintados por Picasso em meados dos anos 1950. Fazendo seus lances estavam membros do clã bilionário Nahmad.

 

DINASTIA DA ARTE: OS NAHMADS
Os Nahmads começaram sua dinastia de banqueiros judeus sefarditas em Aleppo, Síria, em 1948. Hillel Nahmad mudou-se com mulher e oito filhos para Beirute. Três dos filhos – Giuseppe, David e Ezra – mudaram-se depois para Milão e, no início dos anos 1960, tornaram-se ativos negociantes de arte.

Giuseppe, então patriarca da família, tinha gosto por carros esportes caros e, segundo o irmão David, chegou a namorar a atriz Rita Hayworth. Foi também pioneiro em tratar o negócio de arte como mercado futuro, estocando pinturas até o momento exato de vender com o máximo de lucro.

Morreu em 2012. David assumiu a liderança da família. Ele e seu irmão mais velho, Ezra, batizaram os filhos com o nome do avô, Hillel. Os dois Hillels respondem pelo diminutivo Helly. Os quatro juntos continuam tocando os negócios da família.

Os dois irmãos ainda vivos, David e Ezra, detêm juntos uma fortuna de US 3,3 bilhões, segundo a revista Forbes. Vivem em Mônaco. Além de negociante de arte e operador em moedas, David Nahmad é campeão de gamão.

Os dois filhos deles têm cada um uma galeria de arte com seu nome. A do filho de Ezra é a Helly Nahmad Gallery, de Londres. O filho de David tem uma de nome idêntico em Nova York.

Os registros da Mossack Fonseca indicam que os Nahmads usufruíram desde cedo dos benefícios da “arte offshore”. Giuseppe Nahmad registrou o International Art Center em 1995 por meio do banco suíço UBS e do escritório de Genebra da Mossack Fonseca.

A empresa pode ter existido antes disso sob outro nome. Um documento dos arquivos da Mossack Fonseca diz que o International Art comprou o quadro Danseuses, de Edgar Degas, em outubro de 1989.

O negócio dos Nahmads, que mistura poder e laços de sangue, são talhados para operar em offshores. Com os principais interesses em três países, galerias nos dois lados do Atlântico e a maioria das pinturas guardadas na Suíça, a família precisa de uma estrutura de negócios tornada possível por meio de empresas offshore.

O International Art Center não é a única empresa da família ligada à Mossack Fonseca. Giuseppe Nahmad também criou a Swinton International Ltd, registrada nas Ilhas Virgens em agosto de 1992.

As entidades offshore estão interconectadas por um arranjo de família. Giuseppe Nahmad tinha procuração de advogado para movimentar a conta do International Art no banco UBS desde 1995. David e Ezra também podiam assinar pela companhia no banco. Numa conta aberta no Citibank dois anos depois, Giuseppe e o irmão Ezra assinavam conjuntamente, como mostram os documentos.

Em 1995, a Swinton International autorizou David Nahmad a vender cinco pinturas que a empresa possuía – um óleo em painel de Picasso, as Danseuses de Degas, dois óleos em tela de Henry Matisse e um óleo em tela de Raoul Dufy. Alguns dos quadros foram mais tarde leiloados na Sotheby’s, identificados como pertencendo a uma “coleção particular”. Duas das pinturas tinham sido do International Art Center.

Inicialmente, o International Art era controlado por ações ao portador, tornando impossível dizer quem realmente era o dono. Em 2001, uma resolução da diretoria nomeada pela Mossack Fonseca criou cem cotas na companhia e entregou-as a Giuseppe.

Em 2008, essas cem cotas foram divididas em partes iguais entre David e Ezra Nahmad. Um ano depois, Ezra dividiu suas cotas com o filho Hillel. David não fez o mesmo com seu filho.

Um início de tensão entre David e o filho surgiu em 2007, num raro perfil da família, na Forbes. Segundo o artigo, David, “franzindo o cenho”, teria dito: “Meu filho gosta muito de publicidade. Eu não gosto”.

As atividades extracurriculares de Helly, filho de David, não o recomendavam como bom acionista do International Art. Como seu tio Giuseppe, Helly tinha grandes apetites. Os tablóides falavam de seus gostos: namorar modelos, um andar de apartamentos de muitos milhões de dólares na Trump Tower em Nova York, amigos astros de cinema e jogatina pesada.

Dado o histórico da família, nada disso era problema, até que o promotor federal para o Distrito Sul de Nova York indiciou-o por participação relevante num lance de US$ 100 milhões envolvendo jogo e lavagem de dinheiro em conexão com a máfia russa.

Grampos telefônicos o apanharam discutindo como o negócio de arte da família poderia ser usado para esconder dinheiro: “Às vezes, um banco precisa de uma justificativa”, disse ele numa conversa gravada em março de 2012 e citada em memorando do governo.

“Aí, podemos dizer que ‘você está comprando um quadro’. E você responde ‘ah, sim, comprei um desenho de Picasso’, ou coisa que o valha.” Nunca foi provado no tribunal que o diálogo implicasse em crime. A conversa não constou da acusação final e o advogado de Nahmad disse em entrevista que ela nada tinha a ver com o caso Modigliani.

Helly Nahmad declarou-se culpado de operar jogo ilegal em novembro de 2013. Um juiz condenou-o a 1 ano e 1 dia de prisão. Ele também concordou em abrir mão de US$ 6,4 milhões e dos direitos de um quadro de Raoul Dufy. Cumpriu pena de 5 meses.

ARTE PERDIDA
Os Nahmads não são os únicos colecionadores famosos de arte que viram seus ativos offshore envolvidos em ações legais.

Os dados da Mossack Fonseca oferecem um novo insight no caso de uma disputa legal envolvendo a família Goulandris, dinastia grega de armadores que está no centro de uma disputa sobre o que ocorreu com 83 obras de arte desaparecidas.

Dois processos e uma investigação criminal estão em curso em Lausanne, na Suíça, para determinar o paradeiro e a propriedade da coleção de arte. Os casos envolvem membros de uma grande e abastada família guerreando entre si, empresas de fachada no Panamá, alegações de um documento forjado e pinturas dignas de museu de Van Gogh, Matisse e Picasso.

Algumas foram vendidas. O vendedor não quis que a história fosse a conhecimento público. Num contrato de venda de US$ 20 milhões encontrado nos arquivos da Mossack Fonseca, relativo a uma das pinturas dos Goulandris, Natureza Morta com Laranjas, de Van Gogh, há uma cláusula de confidencialidade.

Proíbe revelar “a identidade das partes neste acordo (incluindo a identidade do único acionista da empresa vendedora)” e “qualquer informação ou documentos referentes à proveniência da obra e histórico de titularidade das obras”.

A tela de Van Gogh pertenceu a um magnata grego, o armador Basil Goulandris, morto em 1994 de complicações decorrentes do Mal de Parkinson. Depois da morte da viúva, Elise, em 2000, os herdeiros descobriram que a enorme coleção de arte do casal havia mudado de mãos anos antes. Uma companhia panamenha chamada Wilson Trading SA. era a proprietária dos quadros.

Em 1985, de acordo com o sobrinho de Basil Peter J. Goulandris, o tio vendera a coleção inteira de 83 pinturas pelo valor extraordinariamente baixo de US$ 3,17 milhões para a Wilton Trading. Mas, apesar da venda, as pinturas jamais saíram da posse do casal. Durante esse período, Basil e Elise Goulandris emprestaram as obras para museus e venderam algumas peças para marchands de arte, informando que as peças pertenciam a eles.

Muito do que se sabe sobre a Wilton Trading provém de processos correndo em tribunais da Suíça. Ela foi criada em 1981, mas não tinha diretores até 1995, dez anos depois de o contrato de compra dos Goulandris ter sido supostamente assinado.

De acordo com um promotor suíço, o papel em que o documento no qual foi firmada a venda não existia em 1985 e ninguém conseguiu provar que algum dinheiro tenha mudado de mãos.

Peter J. Goulandris disse ao tribunal suíço que sua mãe falecida, cunhada de Basil, Maria Goulandris, era a proprietária da Wilton Trading.

Por meio do seu advogado, ele não quis comentar a respeito.

Elise morreu sem deixar filhos herdeiros. Sua sobrinha Aspasia Zaimis entende que merece uma parte das 83 pinturas e está processando o responsável pelo espólio de Elise.

Em novembro de 2004, empresas anônimas criadas pela Mossack Fonseca começaram o processo de vender algumas pinturas dos Goulandris que a Wilton Trading guardava.

No início do ano seguinte, em um leilão da Sotheby’s em Londres, uma companhia chamada Tricornio Holdings vendeu uma pintura de Pierre Bonnard chamada Dans le Cabinet de Toilette. Outra companhia, Heredia Holdings, fechou um contrato com a Sotheby’s para vender uma pintura de Marc Chagall, Les Comédiens.

Uma terceira empresa, Talara Holdings, pôs em leilão um outro quadro de Chagall, O Violinista Azul. No mesmo período, o quadro de Van Gogh pintado em 1888 de uma cesta de laranjas foi para o magnata do marketing direto da Califórnia Greg Renker e sua mulher, Stacey, em uma venda privada. A vendedora foi uma companhia chamada Jacob Portfolio Incorporated. Renker não respondeu a pedidos para falar sobre o assunto.

Todas as quatro companhias foram registradas pouco antes das transações e encerradas logo em seguida, não deixando nenhum rastro sobre quem estaria por trás delas. Os documentos agora revelam que as quatro tinham uma mesma misteriosa proprietária: Marie Voridis.

Uma das transações forneceu uma pista para se chegar à identidade de Marie Voridis. Em 22 de outubro de 2004, Marie Voridis transferiu todos os direitos sobre uma pintura a óleo de Pierre-Auguste Renoir conhecida em inglês como The Seamstress para a Talara Holdings. Algumas semanas depois, a Talara transferiu o quadro de volta para Marie Voridis.

Em setembro de 2005, uma revista de moda grega exibiu o luxuoso apartamento em Nova York de uma socialite grega, Doda Voridis, irmã de Basil Goulandris. Obras-primas de artistas famosos decoravam o apartamento de Doda Voridis no East Side, que morreu em dezembro de 2015. Nas colunas de fofocas ela sempre foi conhecida como Doda, mas seu verdadeiro nome era Marie. Sobre um armário esplêndido estava uma foto de The Seamstress.

GUERRA E TESOURO
A controvérsia sobre o Homem Sentado, com Bengala de Modigliani começou quando a névoa da guerra propiciava o tipo de ocultação que o mundo offshore oferece hoje. Oscar Stettiner, marchand judeu que supostamente seria o proprietário original da pintura, fugiu de Paris em 1939, antes da chegada dos nazistas, deixando para trás sua coleção de obras de arte.

Quando caiu nas mãos dos nazistas, estes confiscaram a coleção e nomearam um “administrador temporário” francês que leiloou os quadros em benefício dos nazistas, de acordo com documentos legais. O quadro Homem Sentado, com Bengala mudou de mãos diversas vezes depois disso. Em outubro de 1944, um oficial militar americano adquiriu o Modigliani em um café por 25 mil francos, ainda segundo os documentos.

Em 1946, Stettiner entrou com ação judicial na França para recuperar o quadro, segundo documentos apresentados em um processo legal em nome de seu neto. Ele morreu dois anos depois, com a demanda ainda pendente.

O advogado de David Nahmad, Richard Golub, contesta essa narrativa e põe em dúvida se Stettiner um dia teria sido proprietário da obra.

Em 1958, o quadro de Modigliani chegou a uma coleção privada onde foi mantido oculto até 1996, quando a offshore International Art Center o adquiriu na Christie’s de Londres por US$ 3,2 milhões, segundo documentos apresentados em tribunais de Nova York. A Helly Nahmad Gallery exibiu o quadro em Londres em 1998 e o Museu de Arte Moderna de Paris, em 1999. Seis anos depois, ele fez parte de uma exposição de obras de Modigliani na Helly Nahmad Gallery de Nova York.

A Mondex Corporation, com sede em Toronto, empresa especializada na recuperação de obras de arte roubadas pelos nazistas, descobriu a suposta proveniência da pintura por acaso, quando examinava arquivos em um ministério francês.

A companhia colaborou para se abrir uma batalha legal para devolver o quadro a Philippe Maestracci, neto de Oscar Stettiner. A Mondex não revelou os honorários recebidos pelo serviço.

Em 11 de fevereiro de 2015 o advogado de defesa de Nahmad no processo de Maestracci em Nova York, Nehemiah Glanc, enviou um e-mail para o advogado do Art Center em Genebra. Glanc era oficialmente o advogado do International Art Center, mas necessitava de alguns fatos chave sobre a companhia antes de dar andamento ao processo, mostram registros vazados obtidas pelo ICIJ.

“Por favor avise o mais breve possível quem está autorizado a assinar em nome do International Art Center”, ele escreve no e-mail.

Se os Nahmads tivessem assinado os documentos como proprietários do International Art Center, provavelmente perderiam a proteção legal que a companhia oferecia.

O advogado em Genebra pôs Glanc em contato com Anaïs Di Nardo Di Maio no escritório da Mossack Fonseca em Genebra. Di Nardo obteria as assinaturas dos diretores indicados da Mossack Fonseca no Panamá desde que os clientes de Glanc pagassem por elas. Ele concordou.

Um documento assinado por um dos diretores indicados pelo escritório de advocacia custou US$ 32,10.

À medida que o processo avançou, e-mails foram trocados entre Glanc e a Mossack Fonseca, mostram os documentos vazados. Toda vez que uma petição vinha do International Art Center, os diretores suplentes tinham de assinar.

Em setembro de 2015, numa austera sala de tribunal em Nova York, a juíza da Suprema Corte do Estado Eileen Bransten indeferiu o pedido. A juíza decidiu que os autores da ação não notificaram de modo adequado o International Art Center de sua petição porque a notificação fora feita para a Nahmad Gallery de Nova York, em vez de ao Panamá.

Ela também decidiu que um administrador nomeado pelo tribunal, e não Maestracci, era o autor apropriado. Dois meses depois o administrador retomou o processo na Suprema Corte do Estado de Nova York na qualidade de autor da ação.

A nova ação contra os Nahmads implicou mais um esforço para ligar a família à propriedade do International Art Center, descrito como alter ego da empresa familiar de maneira a confundir e ocultar suas identidades e ocultar receitas geradas com os negócios da família com obras de arte.

Enquanto o caso prossegue, o quadro de Modigliani de 1918 Homem Sentado, com Bengala está bem guardado na zona franca de Genebra, Suíça, um outro tesouro oculto.

Saiba como foi feita a série Panama Papers

Leia tudo sobre os Panama Papers

O que é e quando é legal possuir uma empresa offshore

Participaram da série Panama Papers  os repórteres Fernando Rodrigues, André Shalders, Mateus Netzel e Douglas Pereira (do UOL), Diego Vega e Mauro Tagliaferri (da RedeTV!) e José Roberto de Toledo, Daniel Bramatti, Rodrigo Burgarelli, Guilherme Jardim Duarte e Isabela Bonfim (de O Estado de S. Paulo).

Blog está no FacebookTwitter e Google+.


< Anterior | Voltar à página inicial | Próximo>