House of Cards massacra o jornalismo
Fernando Rodrigues
Na segunda temporada, série da Netflix expõe as fragilidades da mídia
Repórteres e analistas são pouco informados sobre o que se passa na política
ATENÇÃO: “SPOILERS” NESTE TEXTO!
LEIA SÓ ATÉ A METADE, NA PRÓXIMA MARCAÇÃO VERMELHA
A Netflix coloca no ar nesta sexta-feira (14.fev.2014) a segunda temporada de “House of Cards”, possivelmente a série de TV que mais bem retratou até hoje a crueza da vida política de uma grande capital, no caso, Washington, D.C.
De quebra, uma revolução midiática: “House of Cards” foi o primeiro produto de grande qualidade, consumindo milhões de dólares e elenco estelar, feito apenas para ser transmitido via streaming, com todos os episódios da temporada sendo liberados num mesmo dia no planeta inteiro.
O Blog assistiu sob embargo os 4 primeiros dos 13 episódios. Nesta segunda temporada, um subtema ganha destaque de forma cruel: como os jornais e os jornalistas são desinformados sobre política. Ou como é desigual a relação entre fonte (os políticos) e a mídia (os repórteres), estes últimos sempre subjugados e em posição inferior. Pior ainda: como alguns jornalistas se consideram poderosos e no fundo aparecem de forma patética em “House of Cards”, completamente sem saber o que se passa de fato.
“House of Cards” é protagonizada por Kevin Spacey (de “Beleza Americana” e há muitos anos em Londres encenando Shakespeare). Na série da Netflix, ele é o deputado federal Frank Underwood, um democrata da Carolina do Sul. Implacável nos métodos, passa sobre a cabeça de quem for necessário para conseguir seu objetivo –mais poder.
Como explica Underwood em um de seus monólogos olhando para a câmera, ele despreza as pessoas que se interessam muito e apenas por dinheiro. Dinheiro acaba. O poder, não. Poder é para sempre, afirma o deputado.
Na primeira temporada, Underwood destruiu a reputação de um colega que era autoridade na área da educação, manobrou para indicar a Secretária de Estado (equivalente a ministro das Relações Exteriores no Brasil, mas com muito mais poder) e terminou 2013 pronto para ser nomeado vice-presidente da República.
Nos EUA, quando o cargo fica vago, o presidente indica alguém e o Senado ratifica. Daí a frase pronunciada (presente no trailer desta segunda temporada) por Underwood ao tomar posse. Incorporando o seu “Ricardo 3º mode”, ele olha para a câmera diz, cínico: “A um passo da Vice-Presidência e nenhum voto recebido em meu nome… A democracia é tão superestimada”.
Eis o trailer:
No meio de todas as suas manobras na primeira temporada, Underwood ainda encontrou tempo para matar –isso mesmo, matar– o deputado Peter Russo que atrapalhava o seu caminho. Agora, haverá pelo menos mais uma morte.
A segunda temporada é soturna. Tem cenas mais escuras do que a primeira. Essa é a impressão depois de assistir aos 4 primeiros episódios, todos lúgubres e aflitivos. Underwood está lá. Também está sua mulher, a inefável Claire (a excelente atriz Robin Wright). E todas as maquinações dentro do Congresso e da Casa Branca para favorecer um grande milionário na área de energia, tentar emplacar o novo líder da maioria e aprovar um plano de reforma previdenciária reduzindo a idade mínima de aposentadoria.
Esses temas remetem também à política praticada em várias democracias representativas ocidentais que copiam o modelo dos EUA –ou tentam copiar, como o Brasil.
Mas o que me chamou a atenção foram as relações fonte-jornalista. Já na primeira temporada, o deputado Frank Underwood escolhe uma repórter iniciante no principal jornal da capital dos EUA para ser o seu canal privilegiado de vazamentos. Trata-se de Zoe Barnes, interpretada por Kate Mara.
Nos episódios de 2013, Zoe Barnes já demonstra algumas fraquezas éticas. Vai para a cama e faz sexo com o deputado. Permite a ele, numa prova de que é uma repórter confiável, fotografá-la nua depois de terem transado. Essas imagens reaparecem agora nos episódios de 2014, de maneira assustadora.
RACHEL MADDOW
No início do segundo episódio desta segunda temporada, Frank Underwood toma posse como vice-presidente dos EUA. Enquanto se prepara para cerimônia dando um nó na gravata, uma TV está sintonizada na comentarista Rachel Maddow , da MSNBC, o canal a cabo mais identificado com os democratas. Ela tem mais de 2.8 milhões de seguidores no Twitter.
Maddow aparece como ela própria. Dá ainda mais verossimilhança à série. Em 2013 outros jornalistas e analistas políticos também apareceram representando a si mesmos –Soledad O'Brien (da CNN), Bill Maher (HBO) e George Stephanopoulos (ABC), entre outros.
Desta vez a aparição de Maddow é constrangedora. Ao assistir fiquei me perguntando: por que uma jornalista de prestígio como ela aceitaria ser mostrada nessas condições, quase como uma tonta?
Frank Underwood manobrou o presidente da República para virar vice-presidente. Conseguiu escolher a dedo uma deputada novata para ficar no lugar que fora dele como líder da maioria na Câmara. Tem nas mãos também um magnata amigo da Casa Branca. Enfim, trata-se de alguém que manda em Washington.
Não obstante, Rachel Maddow analisa a nomeação da seguinte forma: “… Não é a escolha mais inspiradora para vice-presidente, certo? Quer dizer… Um respeitado operador, pragmático… Mas vamos admitir, provavelmente […] só um esquentador de cadeira até 2016”.
A análise é obtusa. Errada. Maddow representando a si própria demonstra que não conhece talvez o poder do político mais influente na administração federal. Não faz menção à guerra de bastidores vencida pelo novo vice-presidente. Enfim, para quem assiste a “House of Cards”, a comentarista da MSNBC surge cometendo o pior pecado de um jornalista: ser desinformado.
Por outro lado, é até louvável que Maddow tenha participado como ela própria no seriado, de forma magnânima, mostrando uma vulnerabilidade desalentadora da mídia. Não deixa de ser um alerta para quando assistimos aos “talking heads” politólogos na TV todas as noites. Nos EUA o mesmo aqui no Brasil.
Mas o problema maior da relação entre fonte e jornalista está entre Frank Underwood e Zoe Barnes.
ATENÇÃO, MAIS SPOILERS! MUITOS
Se você não quer saber o que se passa, PARE AQUI! Fuja das redes sociais e nunca nem pense em digitar “House of Cards” num buscador. Assista antes aos episódios da segunda temporada.
Quando a série terminou em 2013, Zoe Barnes estava perto de descobrir se Frank Underwood matou uma pessoa –o deputado federal Peter Russo que estava atrapalhando a vida do protagonista da série.
No início desta segunda temporada, Zoe avança um pouco na apuração com a ajuda de seu novo namorado, o repórter Lucas Goodwin, um editor do jornal “The Washington Herald” (uma referência direta ao “Washington Post”), e da amiga também repórter Janine Skorsky.
A esta altura, tanto Zoe quanto Janine já saíram do “Washington Herald” e trabalham para o site online de notícias “Slugline” –outra referência aos tempos difíceis enfrentados pela mídia.
Zoe se aproveita do namorado, que tem muitas fontes entre policiais de Washington e pode checar as circunstâncias em que o deputado assassinado por Underwood foi apresentado como suicida.
Fica sempre a impressão de que entre Zoe e Lucas a relação é assimétrica. Ele parece nutrir algum sentimento. Ela, interesse.
A direção de “House of Cards” é especialmente severa na composição da personagem Zoe Barnes. Em 2013, a jornalista foi para a cama com Underwood. Agora, logo no primeiro episódio, aparece nua e de bruços sobre a cama enquanto espera seu namorado chegar ao orgasmo. Com cara de tédio, a jornalista vira o rosto para trás e pergunta: “Are you finished…? I am good” (Você acabou…? Eu estou bem”).
Se alguém pensou na relação e no diálogo de uma prostituta com seu cliente, acertou. Essa é a ideia que fica, de maneira quase grosseira (“termine logo”). O grave aqui é que se trata de uma jornalista e sua fonte-namorado. E mais: a repórter que está investigando o político mais poderoso naquele momento em Washington. Eis aí como aparece a mídia em ''House of Cards''.
Em completo anticlímax, Lucas para de transar. Esparrama-se ao lado de Zoe na cama. Ela caminha nua até o box para tomar um banho. Ouve Lucas dizer que não está certo ouvir dela “finished” e “shut down” nessas ocasiões. A repórter se volta e olha para o namorado. E ele: “Aqui está seguro, Zoe. Eu não sou ele” –numa referência direta a Frank Underwood.
Nos dias seguintes Zoe tenta obter mais pistas sobre o deputado que suspeita ter sido assassinado. Mas quem mais dá dicas a ela é Lucas, que descobre que o político morto foi encontrado no banco do carona do carro, e não na posição do motorista –a morte foi por asfixia e inalação de gases do escapamento do carro. Lucas e Zoe não sabem, pois isso não consta do relatório da polícia, mas Underwood se aproveitou que o colega congressista estava bêbado e o deixou desacordado na garagem fechada, com o motor do carro ligado e a porta fechada.
Underwood pede um encontro com Zoe. A repórter discute essa possibilidade com o namorado e com a amiga jornalista, que se mostram reticentes. “Eu só vou falar com ele. Não vou foder com ele”, responde Zoe.
O encontro se realiza num dos diversos parques de Washington, Rock Creek Park. Enquanto isso, Lucas já havia conseguido o relatório da polícia sobre o caso do “suicídio” e envia dados por SMS para Zoe –a história do banco do carona.
Quando Underwood e Zoe estão frente a frente há um forte componente autoritário por parte do político. É a autoridade versus alguém visivelmente mais frágil. “Onde está seu celular?”, é a primeira pergunta do deputado.
E Zoe: “Está aqui. Não está gravando”.
São duas pessoas que já tiveram sexo e compartilham segredos de Estado, mas ainda têm de começar uma conversa com a desconfiança a respeito de o diálogo estar ou não sendo gravado.
Quem manda ali é Underwood, o político. Não Zoe, a repórter.
Zoe começa a fazer perguntas sobre o deputado que havia cometido “suicídio”. Sugere que Underwood saiba mais do que admite.
Frank se levanta…
“Você vai me culpar se eu achar difícil confiar em você agora?”, pergunta a repórter. Sem mexer um músculo da face, o político dá o bote: “Confie em mim ou não, eu estou para ser confirmado como vice-presidente e a nossa relação vai se estender para o Salão Oval agora”.
É a fonte poderosa tentando engambelar a repórter. Na prática, propõe um negócio: dê imunidade para mim e eu dou a você acesso ao poder.
A repórter fica em silêncio. Demonstra estar tentada a aceitar.
Underwood insiste:
“Não saia da luz do sol agora sem razão… Vamos começar um novo capítulo a partir do zero… Pense a respeito [com o indicador toca no queixo de Zoe e levanta seu rosto]… A gente se vê”.
Mas Zoe continua em dúvida. Revela uma certa ingenuidade ao querer novamente falar com Underwood sobre o mesmo assunto. Parece em busca de argumentos para mentalmente aliviar-se e desincumbir-se de culpa por não conseguir apurar a história integralmente.
Zoe e Underwood se encontram na estação de metrô Cathedral Heights. A repórter admite que ultrapassou limites éticos e físicos com ele. Mas quer saber detalhes da operação da qual ela julga ter participado de maneira talvez inadvertida.
Ríspido, Underwood quer saber qual operação. “Do assassinato de alguém”, responde Zoe.
“Jesus”, exclama Underwood, irritado. E sai andando.
Eles estavam quase de costas um para o outro, em torno de um tapume que havia sobre a plataforma da estação de metrô, parcialmente em reforma.
Zoe se volta para a direção na qual o deputado se dirigia. “Eu quero acreditar em você”.
Eles estão em um ponto cego no qual câmeras do Metrô nada gravam. Underwood se vira rapidamente. Agarra Zoe pelos ombros com as duas mãos. Arremessa a repórter com violência para o fosso da plataforma um segundo antes de um trem passar.
Zoe morre. Underwood sai do local vestindo sobretudo e chapéu. Anda normalmente.
Ao chegar em casa, é recebido pela mulher, Claire. A sala está escura. Há um pequeno bolo à mesa e uma vela acesa. É aniversário de Underwood. Ele se senta, coloca o dedo sobre a vela e a apaga. Não há diálogo.
Esse roteiro é um pouco além do que a realidade pode nos propiciar? Pode ser. Políticos bandidos já não matam inimigos nem mesmo repórteres com suas próprias mãos. Eles têm quem faça para eles o trabalho sujo.
Mas “House of Cards” é uma metáfora. Uma alegoria do poder se sobrepondo à mídia, incapaz de fazer investigações. É um espetáculo que merece ser assistido.
Num dado momento, Frank Underwood vai comer suas costelas de porco favoritas num boteco de Washington. A carne está melhor do que o de costume. O atendente explica que tem comprado o produto de um novo açougueiro. O animal é morto com sangria de forma bem lenta. É cruel e possivelmente ilegal, diz. Mas a carne fica mais suculenta.
É como diz Underwood: ''Para aqueles de nós escalando até o topo da cadeia alimentar, não pode haver misericórdia. Só há uma regra. Cace, ou seja caçado''.