Blog do Fernando Rodrigues

Luxemburgo mostra falência do sistema tributário mundial

Fernando Rodrigues

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G20 deve discutir nova arquitetura fiscal global em encontro na Austrália neste mês

A exposição de centenas de operações fiscais secretas em Luxemburgo para reduzir impostos revela a falência quase completa do sistema tributário mundial. Um vazamento de documentos da PwC (PricewaterhouseCoopers) mostrou como 343 empresas enviaram centenas de bilhões de dólares para esse pequeno paraíso fiscal europeu e economizaram outros bilhões de dólares em impostos.

No caso do Brasil, os dois maiores bancos privados do país, Bradesco e Itaú-Unibanco, economizaram até R$ 200 milhões numa mera troca de papeis na virada dos anos 2008 para 2009. Os bancos negam irregularidades. O ponto aqui não é ser ou não ser legal, mas sim a ineficiência do sistema de cobrança de tributos dentro de um determinado país.

A investigação sobre esse caso, batizado de “Luxembourg leaks” (vazamentos de Luxemburgo), com a hashtag #luxleaks, ficou sob a supervisão do ICIJ (Consórcio internacional de Jornalistas Investigativos). Mais de 80 jornalistas em 26 países participaram da apuração, que durou cerca de 6 meses e foi publicada em 5.nov.2014. Um mapa interativo mostra parte do que foi publicado a respeito pelo mundo.

Bastou a série de reportagens ser divulgada para duas avaliações antagônicas serem defendidas nas redes sociais: 1) é um absurdo grandes corporações e bancos se envolverem em planejamento tributário abusivo, visando a pagar cada vez menos impostos; 2) é um absurdo que as empresas e os bancos sejam submetidos a pagar impostos tão altos (no Brasil, os bancos têm de pagar 40% sobre o lucro); fazem portanto muito bem em tentar recolher menos tributos.

Essas duas opiniões omitem o principal. O mundo capitalista, como o conhecemos, precisa ter um sistema sólido de cobrança de impostos para que o Estado sobreviva e prospere o livre mercado, em condições equânimes de competição para todos os atores envolvidos.

Quando grandes bancos e corporações têm acesso a sistemas para pagar menos impostos, o efeito momentâneo será positivo apenas para as empresas que usufruem desse benefício. No médio e no longo prazo, a falência será completa. Os Estados nacionais vão arrecadar menos. As empresas se tornarão cada vez mais gigantescas, solapando a competição e o desejo de prosperar –a força motriz do capitalismo.

É fácil imaginar que só uma fração das empresas brasileiras pode ter acesso a sofisticados modelos de planejamento tributário. Todas as demais –e a esmagadora maioria dos pagadores de impostos comuns, as pessoas físicas– continuarão a pagar impostos conforme manda a lei. Esse sistema não funciona por ser injusto na sua origem.

É necessário ressaltar que as corporações não estão completamente erradas quando buscam formas de pagar menos impostos. O mercado é uma selva. Se o Bradesco faz uma operação em Luxemburgo, por que o Itaú não faria? O banco que abdicar dessas estratégias estará se autocondenando ao fracasso.

Tudo isso é verdade, mas é apenas uma parte da história. Os bancos e as corporações se acostumaram a viver nesse ecossistema. Mudar as regras poderia provocar um desarranjo no bioma no qual já sabem de onde tirar o seu sustento. Numa associação nefanda com as quatro grandes empresas de consultoria-auditoria (PwC, KPMG, Ernst & Young e Deloitte), as corporações e bancos influem para criar leis generosas em vários países, adaptar regras, fazer o tal “planejamento tributário” e terem suas contas sempre aprovadas, sem restrições.

Esse modelo está cabeado para dar errado. Os governos fingem que as coisas funcionam. Aumentam impostos ou mantêm altas as alíquotas. Afinal, para cada grande corporação que faz elisão fiscal em Luxemburgo há outras centenas de firmas de médio porte que acabam arcando com o fardo localmente, sem dinheiro para contratar uma consultoria das “4 grandes”. No plano imediato, os governo continuam a arrecadar e vão tocando o barco.

Quando se observa esse quadro, há quase uma compulsão que pode levar alguns a condenar as empresas e as corporações. No fundo, é um equívoco rejeitar liminarmente o argumento de que as empresas e as corporações têm, de fato, um pouco de razão ao dizer que poderiam ir à falência se pagassem todas as taxas como desejam os governos de vários países.

Como consertar? Impossível no curto prazo. Será necessário um alto grau de concertação entre os principais países do mundo –do Brasil, inclusive. A iniciativa vem sendo discutida no âmbito da OCDE e do G20. Há até um plano de ação conhecido pela sigla Beps, acrônimo de “Base Erosion and Profit Shifting” (Erosão da Base Tributária e Desvio de Lucros). O relatório da OCDE foi publicado em julho de 2013, com uma atualização recente, em agosto de 2014.

Aliás, a reunião do G20 marcada para os dias 15-16.nov.2014, na Austrália, certamente terá na pauta o debate sobre Beps. A presidente Dilma Rousseff vai participar.

A chance de uma solução consensual sair do G20 é pequena. No fundo, quem tem a explicação mais realista para o problema é Nicolas Mackel, chefe do ''Luxembourg for Finance'', uma agência que trabalha com o governo local. Em entrevista ao ICIJ, ele disse: “O sistema tributário de Luxemburgo é competitivo. Não há nada de ilegal ou antiético. Se as empresas conseguem reduzir seus impostos para alíquotas muito baixas, esse não é um problema de um sistema tributário, mas da interação de vários sistemas tributários”. É verdade.

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