Entenda as contas numeradas na Suíça e como o Brasil poderá ter acesso
Fernando Rodrigues
Depositantes têm de ser identificados desde 1992
País não dá acesso, mas governo da França tem os dados
Brasil precisa solicitar arquivos ao governo francês
Bruno Lupion
Do UOL, em Brasília
Fetiche de milionários de todo o mundo e presença constante em enredos de cinema, as contas secretas em bancos suíços identificadas apenas por um código numérico foram extintas há mais de duas décadas.
As contas numeradas eram uma estratégia inigualável para manter a privacidade no começo do século passado. Naquela época, os registros eram feitos em papel e não havia computadores dotados de criptografia. Na década de 40, esse tipo de conta foi determinante para o sucesso dos bancos suíços.
A modalidade permitia que um advogado ou representante legal abrisse uma conta para seu cliente sem que o banco soubesse o verdadeiro dono do dinheiro
Esse tipo de depósito impessoal funcionou até 30 de junho de 1991. Naquele ano foi aprovada uma nova legislação obrigando os bancos suíços a saberem quem eram os donos verdadeiros do dinheiro depositado no país. Os titulares de contas secretas e numeradas, estimados à época em cerca de 30 mil clientes, tiveram até 30 de setembro de 1992 para informar seus nomes ou fecharem suas contas.
Os bancos suíços mantêm até hoje em sua cesta de serviços a possibilidade de abrir contas numeradas. Mas elas não são mais secretas por completo –o titular precisa comprovar sua identidade no ato de abertura da operação.
A diferença da conta numerada para uma tradicional é que o banco identifica o cliente apenas como um número. Poucos funcionários têm acesso ao nome real da pessoa por trás daquele número. Esse é o “benefício” atual das contas numeradas.
A assessoria de comunicação da “Swiss Bankers Association”, equivalente naquele país à Federação Brasileira de Bancos, respondeu assim na semana passada à pergunta sobre se é possível abrir uma conta numerada na Suíça:
“Sim, abrir uma conta numerada é possível. Mas note que uma conta numerada não pode ser confundida com uma conta anônima. Não há contas anônimas na Suíça”.
Em 1º.jul.2004, uma nova legislação anti-lavagem de dinheiro fechou ainda mais o cerco e obrigou os bancos suíços a identificarem os donos das contas numeradas em transferências bancárias internacionais.
PARAÍSOS FISCAIS
Um recurso muito utilizado hoje por milionários que buscam mais privacidade sobre suas fortunas é a abertura de empresas em paraísos fiscais. Nesses locais, cobra-se pouco ou nenhum imposto. Ilhas Virgens Britânicas, Panamá e Luxemburgo são exemplos de nações que oferecem esses serviços.
Conhecidas como “offshores”, as empresas em paraísos fiscais se tornam as titulares oficiais das contas na Suíça no lugar das pessoas que preferem ter suas identidades preservadas. É o caso da família de Jacob Barata, o “rei do ônibus” no Rio, como revelado pelo UOL numa reportagem do Blog do jornalista Fernando Rodrigues.
O UOL relatou a mesma estratégia de uso de offshores por parte de pessoas da família Queiroz Galvão. Controladores das empreiteiras Galvão Engenharia e Queiroz Galvão, integrantes dessa família também aparecem como correntistas do HSBC em 2006 e 2007. O dinheiro deles é controlado por “offshores” sediadas nas Ilhas Virgens Britânicas.
Há crescente pressão por transparência em paraísos fiscais, mas o sistema financeiro suíço ainda é considerado um dos mais fechados do mundo. O relatório “Financial Secrecy Index” de 2013 (última edição disponível) colocou a Suíça no topo do ranking de segredo bancário.
O ritmo de abertura das autoridades suíças à cooperação com outros países é lento e beneficia as nações mais poderosas, com os quais a Suíça tem maior interesse em manter boas relações comerciais e diplomáticas.
O Brasil tem um acordo de cooperação jurídica com a Suíça. Ele permite trocar informações e realizar atos processuais para investigar e punir pessoas acusadas de crimes como lavagem de dinheiro, corrupção e terrorismo.
O tratado não vale para apurar sonegação de impostos ou evasão de divisas. Para buscar sonegadores que não cometeram crimes mais graves, seria necessário um acordo de cooperação fiscal entre as autoridades dos dois países.
Abaixo, algumas respostas para perguntas comuns sobre o funcionamento das contas na Suíça e como os governos podem agir para recuperar dinheiro obtido de forma criminosa depositado em bancos daquele país.
1) Para abrir uma conta na Suíça, é necessário ir pessoalmente ao banco?
Não necessariamente. Tudo pode ser feito por meio de um procurador legalmente constituído. Esse representante, entretanto, terá de identificar de maneira completa o titular da conta. Em alguns casos, a conta pode ser aberta em uma agência do banco no Brasil. Em algumas situações, para clientes muito ricos, o banco envia um funcionário, diretamente da Suíça, para coletar os dados.
2) O banco suíço ou o governo da Suíça perguntam ao correntista sobre a origem do dinheiro?
Informar a origem do dinheiro não é um requisito obrigatório para todas as pessoas que abrem conta em bancos na Suíça. Mas, se o banco desconfiar que aquele dinheiro tem origem criminosa, a instituição deve perguntar ao cliente a origem dos fundos, seus negócios empresariais e sua situação financeira.
O banco também pode solicitar documentos que comprovem a origem do dinheiro, como o contrato de venda de um imóvel, uma declaração de um banco estrangeiro ou o recibo de venda de ações.
É prerrogativa do banco decidir se o cliente é suspeito. Essa avaliação de risco é obrigatória. Está determinada no artigo 6º da lei suíça contra lavagem de dinheiro (conhecida como “AMLA”, acrônimo de Anti-Money Laundering Act).
O banco ou o funcionário que não avaliar o risco do novo cliente, ou que identificar o risco, mas não solicitar informações sobre a origem do dinheiro, está sujeito a multa ou pena de prisão. A Associação dos Bancos Suíços tem hoje 310 bancos filiados.
3) Ao depositar o dinheiro, o correntista paga alguma taxa ou imposto (mensal ou anual) sobre o saldo? Se o dinheiro for aplicado, há imposto sobre o rendimento?
Os bancos suíços cobram taxas de administração dos recursos depositados, que variam de acordo com a instituição. Não incide imposto sobre o saldo das contas.
Os rendimentos financeiros das contas de brasileiros no exterior são tributados pela Receita Federal e devem ser declarados. O imposto é pago no momento de resgate de aplicação.
Brasileiros com depósitos superiores a US$ 100 mil no exterior também devem declará-los anualmente ao Banco Central. Quem não fizer isso está sujeito a multa de até R$ 250 mil.
4) Se o governo do Brasil suspeitar que um contribuinte brasileiro cometeu crime de sonegação fiscal ou praticou evasão de divisas, é possível pedir a quebra de sigilo bancário ao governo da Suíça? Há alguma hipótese em que a Suíça aceita quebrar o sigilo?
O Brasil e a Suíça têm um tratado de cooperação jurídica em matéria penal. Esse acordo não vale, entretanto, para os casos de sonegação fiscal ou evasão de divisas, que não são considerados crimes na Suíça.
O tratado permite que autoridades de ambos os países troquem informações e realizem atos processuais para investigar e punir pessoas acusadas de crimes como lavagem de dinheiro, corrupção e terrorismo. Se houver fundamento, a Justiça suíça pode determinar a quebra de sigilo, compartilhar os dados ou até repatriar os recursos ao Brasil.
Essa cooperação já foi utilizada em casos famosos, como o do conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo Robson Marinho, suspeito de receber propina da multinacional francesa Alstom, e do ex-prefeito Paulo Maluf, acusado de corrupção e desvio de verbas públicas.
A Suíça já demostrou que não aceita colaborar com o Brasil em casos de sonegação fiscal ou evasão de divisas. Em 2006, o Ministério Público Federal brasileiro recebeu documentos enviados pelos suíços para investigar suspeita de corrupção, mas denunciou Paulo Maluf por evasão de divisas. O episódio provocou um incidente diplomático.
Insatisfeita com o uso dos dados para finalidade diversa da combinada, a Suíça ameaçou suspender o tratado de colaboração com o Brasil. Pressionada, a Promotoria brasileira acabou solicitando à Justiça o arquivamento da ação.
5) Se o governo do Brasil não tem acordo de cooperação fiscal com o governo da Suíça, como será possível obter os dados do caso SwissLeaks?
É inútil as autoridades brasileiras tentarem obter do governo suíço os dados dos 8.667 correntistas do Brasil que mantinham contas na agência de “private bank” do HSBC em Genebra, na Suíça, nos anos de 2006 e 2007.
Ocorre que esses dados foram retirados do HSBC por um ex-funcionário da instituição, Hervé Falciani. Ele entregou todo o acervo de informações (cerca de 106 mil contas bancárias de dezenas de países) para o governo francês.
O Fisco da França homologou os documentos entregues por Falciani como provas para processar cidadãos franceses acusados de sonegação fiscal e evasão do divisas –além de outros crimes.
O governo francês também compartilhou os arquivos do HSBC com vários países desde 2010. A Bélgica, por exemplo, já recuperou cerca de US$ 500 milhões de cidadãos daquele país que mantinham contas no HSBC da Suíça.
6) O governo do Brasil pode requerer ao governo da França acesso aos dados do HSBC que deram origem ao SwissLeaks?
Sim, pode.
7) Se a França tem compartilhado os dados com outros países desde 2010, por que até o início de 2015 o governo brasileiro não havia requerido os dados?
Não se sabe.
À época, em 2010, a mídia divulgou amplamente que a França estava compartilhando os dados. O caso à época ficou conhecido como “Lagarde list”, pois a então ministra da Economia da França, Christine Lagarde (hoje diretora-gerente do FMI), entregou parte dos dados para o governo da Grécia tentar combater a evasão de divisas. Depois disso, os franceses só forneceram as informações a países que demonstraram interesse.
8) Os dados fornecidos pelo governo da França poderão ser usados como prova judicial no Brasil, para que sejam processados por sonegação fiscal ou evasão de divisas os que cometeram esses crimes ao manter contas no HSBC da Suíça?
Essa pergunta ainda não tem resposta definitiva.
Primeiro, será necessário entender como o governo francês conseguiu homologar como verdadeiros os dados recebidos por meio de Hervé Falciani.
Em seguida, será necessário verificar se a Justiça no Brasil acolherá essa chancela do governo francês.
Advogados de brasileiros que tinham contas no HSBC suíço afirmaram ao Blog que utilizarão a teoria dos “frutos da árvore envenenada” para defender seus clientes. Essa doutrina diz que documentos obtidos de forma ilegal não podem servir como prova –logo, se Falciani furtou esses dados do HSBC, eles não poderiam motivar um processo. A palavra final será dos tribunais.
9) No caso de brasileiros acusados de outros crimes (corrupção, lavagem de dinheiro etc.) o governo pode requerer os dados da Suíça?
Sim, nessa hipótese há colaboração entre os dois países.
10) Os dados de saldo bancário do SwissLeaks se referem a 2006 e 2007. Qual a chance de autoridades brasileiras saberem os valores depositados nessas contas antes de 2006 e depois de 2007?
Pequena. O correntista brasileiro deve ser investigado ou denunciado por crimes como corrupção, lavagem de dinheiro ou terrorismo, e a Suíça precisa concordar em colaborar com as autoridades brasileiras.
Suspeitas de evasão de divisas ou sonegação fiscal não são suficientes para que a Suíça envie dados das contas às autoridades brasileiras.
A atitude da Suíça em relação ao Brasil é diferente da adotada com países mais poderosos, como o Reino Unido. Desde 2013, um tratado bilateral confere à autoridade fiscal bretã acesso aos dados de contas bancárias de seus cidadãos mantidas na Suíça. Os depósitos e seus rendimentos estão sujeitos ao pagamento de impostos ao Reino Unido.
A Suíça assinou em novembro de 2014 um tratado multilateral no âmbito da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) que estabelece a troca automática de informações bancárias para finalidades fiscais. O Brasil também é signatário do texto e, em tese, poderá solicitar o intercâmbio de dados com autoridades suíças a partir de 2018.
A adesão da Suíça ao tratado foi comemorada pela OCDE, mas há diversas barreiras à efetiva colaboração em matéria fiscal. O Parlamento suíço ainda precisa aprovar o tratado e os legisladores locais estão sujeitos ao poderoso lobby dos bancos.
Mesmo que o texto passe pelo Legislativo, a Suíça poderá escolher com quais países signatários do tratado estabelecerá a cooperação. A tendência é privilegiar países mais influentes, com maior poder de pressão sobre os interesses suíços.
11) Qual foi o grande escândalo descoberto há alguns anos de contas de judeus que ficaram perdidas em bancos suíços?
Na década de 90, a comunidade judaica se organizou para localizar e reaver valores depositados por vítimas do Holocausto em bancos suíços que teriam sido incorporados ao patrimônio das instituições.
Uma comissão chefiada por Paul Volcker, ex-diretor do Federal Reserve (banco central dos EUA), foi constituída em 1996 e investigou por 3 anos os arquivos dos bancos suíços em busca de depósitos de judeus vítimas dos nazistas. Foram localizadas 54 mil contas possivelmente relacionadas a essas pessoas.
Em 1995, o Congresso Judaico Mundial moveu uma ação contra os 2 maiores bancos suíços, o UBS e o Credit Suisse. Em 1998, ambos fecharam um acordo e concordaram em pagar US$ 1,25 bilhão para vítimas do Holocausto e seus herdeiros.
12) Qual o tamanho da riqueza depositada em bancos suíços?
Em 2012, os bancos suíços administravam uma fortuna de cerca de US$ 2,8 trilhões. Naquele mesmo ano, a soma de todos os bens e serviços que o Brasil produziu foi de US$ 2,2 trilhões.
Participaram também da apuração desta reportagem os jornalistas Fernando Rodrigues (do UOL) e Chico Otávio, Cristina Tardáguila e Ruben Berta (de “O Globo”).