Fonte anônima dos Panama Papers lança manifesto e propõe colaboração
Fernando Rodrigues
“John Doe” se diz ser necessário proteção legal a vazadores
Dados foram oferecidos a jornais que decidiram não usá-los
Fonte alega não estar ligada a nenhum governo ou agência
Leia aqui neste post a íntegra do manifesto, em português
A fonte anônima responsável pelo vazamento de 11,5 milhões de documentos da firma panamenha de advocacia Mossack Fonseca divulgou um manifesto ontem, 6ª feira (6.mai.2016). No texto, mostra disposição para colaborar com autoridades na resolução de casos de evasão de divisas.
Batizado de “A revolução será digitalizada” [“Revolution will be digitized”], o manifesto afirma que a fonte ofereceu os documentos a editores de outros meios de comunicação, mas eles não quiseram divulgá-los. A documentação também teria sido oferecida à organização Wikileaks, que teria ignorado os avisos.
O texto foi entregue ao repórter Bastian Obermayer, do jornal alemão Suddëutsche Zeitung.
Em tom pessimista, a fonte faz críticas aos meios de comunicação, aos governos e à comunidade jurídica por suposta conivência com a sonegação fiscal e com a corrupção disseminada. O manifesto é assinado com o pseudônimo “John Doe”, expressão que significa “João Ninguém” em inglês.
Com um viés de esquerda, a fonte anônima afirma: “O resultado para a sociedade dessas falhas é a erosão completa dos padrões éticos, levando, no fim, a um novo sistema que nós continuamos chamando de capitalismo, mas que está muito mais para a escravidão econômica”.
A série Panama Papers, que começou a ser publicada em 3.abr.2016, é uma iniciativa do ICIJ (Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos), organização sem fins lucrativos e com sede em Washington, nos EUA. Os dados foram obtidos pelo jornal Süddeutsche Zeitung. O material está em investigação há cerca de 1 ano. Participam do trabalho com exclusividade no Brasil o UOL, o jornal “O Estado de S.Paulo” e a RedeTV!.
Leia abaixo a íntegra, em português, do manifesto de John Doe (aqui, em inglês):
A revolução será digitalizada
A desigualdade de renda é uma das principais assuntos do nosso tempo. Ela afeta a todos nós, no mundo todo. O debate sobre o a aceleração repentina da desigualdade perdura há anos. Políticos, acadêmicos e ativistas foram incapazes de impedir o aumento na concentração de renda, a despeito dos inúmeros discursos, análises estatísticas e de protestos pontuais. Mesmo assim, a questão persiste: por que? E por que agora?
Os Panama Papers oferecem uma resposta: corrupção massiva e persistente. E não é coincidência que a resposta venha de um escritório de advocacia. A Mossack Fonseca é bem mais que uma engrenagem na máquina da “gestão da riqueza”. A firma panamenha usou sua influência para criar e distorcer leis em vários países ao redor do mundo, de forma a proteger os interesses de criminosos ao longo das últimas décadas.
Tome-se como exemplo a ilha de Niue: a Mossack cuidou de todas as etapas da montagem de um paraíso fiscal. Ramón Fonseca e Jurgen Mossack tentaram fazer crer que as companhias de fachada [shell companies] montadas por sua empresa, às vezes chamadas de “veículos de propósito especial”, são como carros de passeio.
Mas vendedores de carros usados não escrevem leis. E, frequentemente, o único “propósito especial” dos “veículos” que a Mossack produz é a fraude em larga escala.
Empresas de fachada são frequentemente associadas ao crime de sonegação de impostos. O que os Panama Papers mostraram é que, apesar de não serem ilegais por definição, essas empresas são usadas para uma gama de crimes que vai muito além da sonegação.
Eu decidi expor as atividades da Mossack Fonseca por acreditar que seus fundadores, empregados e clientes precisam responder pelo papel que cumpriram nesses crimes, dos quais apenas alguns foram expostos até agora. Levará anos, possivelmente décadas, para que toda a extensão dos malfeitos da Mossack seja conhecida.
Ao mesmo tempo, um novo debate global sobre o tema emergiu, o que é animador. Ao contrário da retórica educada do passado, que cuidadosamente omitia qualquer indício de malfeito por parte da elite, o debate atual foca no que realmente importa.
Eu tenho alguns pontos a apresentar sobre este debate.
Quero deixar registrado que eu não trabalho com nenhum governo ou agência de inteligência, nem diretamente e nem sob contrato, e nunca trabalhei. Meu ponto de vista é totalmente particular, assim como foi minha decisão de compartilhar os documentos com o Suddëutsche Zeitung e com o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos.
A decisão não se baseia em nenhum propósito político específico; apenas no fato de que eu conheço os documentos bem o suficiente para entender a dimensão das injustiças que eles descrevem.
A narrativa dominante na imprensa até agora explorou o escândalo do que é possível fazer, de forma legal, dentro do sistema [das offshores]. De fato, coisas escandalosas são permitidas por lei e precisam ser mudadas.
Mas não podemos perder de vista outro fato importante: a Mossack, seus fundadores e empregados violaram repetida e conscientemente uma miríade de leis mundo afora. Em público, eles alegam desconhecimento dos fatos, mas os documentos mostram que eles os conheciam em detalhes e agiam deliberadamente.
No mínimo, já sabemos que Jurgen Mossack mentiu diante de um tribunal federal em Nevada (EUA) e sabemos também que a equipe de TI da Mossack trabalhou para ocultar traços do perjúrio. Todos eles devem ser processados de acordo com a lei, sem privilégios.
Ao fim e ao cabo, milhares de denúncias podem resultar dos Panama Papers, desde que as autoridades possam acessar e avaliar o acervo de documentos. O ICIJ e seus parceiros decidiram, corretamente, que não repassariam os documentos às agências governamentais. Eu mesmo, porém, estou disposto a cooperar com as autoridades dentro das minhas possibilidades.
Há vários vazadores [whistleblowers] e ativistas nos Estados Unidos e na Europa que tiveram suas vidas destruídas depois de lançar luz em casos nos quais obviamente houve crime. Edward Snowden está retido em Moscou, exilado pela decisão do governo Obama de denunciá-lo pela violação da Lei de Espionagem [Espionage Act]. As revelações de Snowden sobre a NSA merecem honras de herói e um prêmio substancial, não banimento.
Bradley Birkenfeld recebeu milhões como prêmio por suas informações sobre o banco suíço UBS –e mesmo assim acabou condenado à prisão pelo Departamento de Justiça (dos EUA).
Antoine Deltour está sendo julgado por ter repassado a jornalistas informações sobre acordos tarifários secretos entre Luxemburgo e multinacionais. O país europeu ofereceu condições “de pai para filho” às empresas, resultando em perdas de bilhões de euros em impostos para os países vizinhos. E há dezenas de outros exemplos.
Vazadores legítimos, que expõe crimes inquestionáveis, merecem imunidade contra reações de governos. Até que os governos criem leis garantindo essa proteção aos que fazem denúncias anônimas, as autoridades dependerão de seus próprios recursos e das informações publicadas pela mídia.
É preciso que a Comissão Europeia, o Parlamento Britânico, o Congresso dos EUA e todos os demais países ajam de forma rápida não só para proteger os vazadores, mas também para dar fim aos abusos de firmas como a Mossack Fonseca.
Na União Europeia, os registros de empresas de todos os países membros deveriam estar acessíveis, com dados detalhados sobre os beneficiários finais.
O Reino Unido pode se orgulhar das iniciativas domésticas já tomadas até o momento, mas ainda há muito o que fazer para acabar com a opacidade financeira existente em vários de seus territórios ultramarinos, que são, sem dúvida, peças centrais para a corrupção mundo afora.
E os Estados Unidos não podem continuar confiando que seus 50 Estados tomarão decisões corretas sobre as informações corporativas. Já passou da hora de o Congresso entrar na discussão e forçar o aumento da transparência, estabelecendo padrões para a abertura e o acesso público.
Uma coisa é louvar as virtudes da transparência em fóruns governamentais. Outra totalmente diferente é implementá-la na prática. É um “segredo aberto” o fato de que, nos EUA, os representantes eleitos passam a maior parte de seu tempo coletando doações de campanha.
A sonegação fiscal jamais será eliminada enquanto os políticos dependerem de dinheiro dos mesmos que têm os maiores motivos para sonegar impostos dentre todos os segmentos da sociedade. Essas práticas políticas inadequadas fecharam um ciclo. O sistema de financiamento de campanhas dos EUA faliu e sua reforma não pode esperar mais.
Obviamente esses não são os únicos problemas. O primeiro ministro da Nova Zelândia, John Key, permaneceu estranhamente silencioso diante do papel de seu país em viabilizar a Meca da fraude fiscal que são as Ilhas Cook. Na Grã Bretanha, os Tories (partido conservador) não tiveram pudor em esconder o uso de empresas offshores.
Enquanto isso, Jennifer Shasky Calvery, diretora da Rede de Combate a Crimes Financeiros do Tesouro dos EUA, acaba de renunciar ao cargo. Ela trabalhará para o HSBC, um dos principais bancos do mundo (e não coincidentemente sediado em Londres). Milhares de beneficiários finais ainda ocultos de empresas offshores devem estar rezando para que o substituto dela no Tesouro seja igualmente desmotivado.
Em face da covardia política generalizada, há a tentação de render-se ao derrotismo e argumentar que o status quo continuará fundamentalmente intocado. Os Panama Papers são, se mais não fossem, um sintoma reluzente do tecido moral cada vez mais doente e apodrecido da nossa sociedade.
Mas a questão finalmente está sobre a mesa. Não é surpresa que uma mudança leve tempo. Durante 50 anos, os poderes Legislativo, Judiciário e Executivo ao redor do mundo falharam completamente em atacar os paraísos fiscais em metástase mundo afora. Mesmo hoje, o Panamá diz querer ser lembrado para além dos papéis [“for more than papers”], mas o governo, de forma conveniente, só examinou 1 cavalinho no carrossel das offshores.
Bancos, agências reguladoras do sistema financeiro e autoridades fiscais falharam. As decisões tomadas pouparam os ricos e concentraram0-se nos pobres e na classe média.
Tribunais retrógrados e ineficientes falharam. Juízes habituaram-se a aquiescer aos argumentos dos ricos, cujos advogados –e não só a Mossack Fonseca– são competentes em seguir a letra da lei enquanto fazem tudo o que podem para contrariar o espírito das normas.
A mídia falhou. Muitos veículos são hoje caricaturas do que já foram. A propriedade de jornais parece ter virado um hobby para bilionários, limitando a cobertura de questões sobre os ricos. O jornalismo sério carece de financiamento. O impacto é real: além do Süddeutsche Zeitung e do ICIJ, editores de vários outros grandes meios de imprensa analisaram os documentos do Panama Papers e decidiram não entrar na investigação. A triste realidade é que nenhuma das principais organizações de mídia do planeta se interessou em cobrir a história. Nem mesmo o Wikileaks respondeu a vários contatos seguidos.
Acima de tudo, a advocacia falhou. O sistema democrático depende de indivíduos responsáveis, espalhados por todo o sistema, que entendam e defendam a lei, não que a entendam para melhor explorá-la [em benefício próprio]. Na média, os advogados se tornaram tão profundamente corruptos que é fundamental que hajam mudanças profundas na profissão, muito além das propostas cosméticas já apresentadas.
Para começo de conversa, o termo “ética legal”, no qual se baseiam os códigos de conduta da advocacia, se tornou um oximoro. A Mossack Fonseca não trabalhava no vácuo –a despeito das multas e violações documentadas às regulamentações do setor, ela encontrava aliados e intermediários em grandes firmas de advocacia, em virtualmente todos os países.
Se a situação econômica decrépita da indústria da advocacia já não fosse evidência suficiente, agora não há mais como negar que advogados não podem regular uns aos outros. Isto simplesmente não funciona. Aqueles aptos a pagar mais sempre podem encontrar um advogado que sirva aos seus fins, esteja esse advogado trabalhando para a Mossack Fonseca ou para outro escritório ainda desconhecido para nós. E o restante da sociedade, como fica?
O resultado para a sociedade dessas falhas é a erosão completa dos padrões éticos, levando, no fim, a um novo sistema que nós continuamos chamando de capitalismo, mas que está muito mais para a escravidão econômica.
Neste sistema –nosso sistema atual– os escravos não sabem nem que são escravos e nem quem são seus mestres, que vivem num mundo à parte. Neste mundo, os grilhões intangíveis são escrupulosamente escondidos por camadas e camadas de “juridiquês” impenetrável. A magnitude dos danos deveria acordar a todos nós. O fato de ser preciso um vazador para soar o alarme deveria ser motivo de mais preocupação ainda. Isto mostra que os pesos e contrapesos [checks and balances] da democracia falharam, que o problema é sistêmico e que a desordem severa e disseminada pode estar bem próxima. É hora de agir de verdade e o primeiro passo é fazer as perguntas corretas.
Historiadores podem facilmente demonstrar como problemas envolvendo impostos e desequilíbrios de poder resultaram em revoluções no passado. Naquela época, a força militar era necessária para subjugar o povo. Hoje, restringir o acesso à informação é tão eficaz quanto ou mais, uma vez que a ação se dá, geralmente, de forma invisível. Mesmo quando vivemos em uma época na qual a armazenagem de dados online é cada vez mais barata e ilimitada e na qual as conexões à internet transcende as fronteiras nacionais.
Não é muito difícil ligar os pontos: do começo ao fim, da fundação até o impacto midiático global, a próxima revolução será digitalizada.
Ou talvez já tenha começado.
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